Panças e bigodes !
Nunca pensei dizer isto algum dia, mas nos últimos tempos o meu herói é… um simples funcionário público. Para mais daqueles caídos em desgraça por dizerem umas verdades. Como as verdades que disse são do tamanho de um camião, aqui confesso a minha chapelada.
Admito que o lugar de inspector-geral “das polícias” já despertou em mim mais interesse pela exuberância das gravatas dos titulares do que pela consequência das suas acções. E embora o engravatado Maximiano Rodrigues gostasse de pôr a boca no trombone, nunca as suas públicas palavras fizeram eco a sério nos corredores dos mandantes.
Agora, de gravata mais modesta mas bico mais afiado, Maximiano tem um seguidor: “Há para aí muita 'coboiada' de filme na mentalidade de alguns polícias", disse o novo inspector de polícias, Clemente Lima, em recente entrevista.
Caiu o (quartel do) Carmo e a (santíssima) Trindade, esta composta por uma oposição à procura de argumentos contra, um Governo que assobiou para o ar em vez de encarar a veracidade (ou não) dos argumentos e umas associações sindicais que ficaram espavoridas e se refugiaram nas meias tintas, entre a virgem ruborescida e o chuto para a frente, leia-se “no traseiro do Executivo”, que é sempre, em última instância, quem tem a culpa de tudo. Mesmo dos desmandos de homens que teimam em deixar crescer a pança e o bigode.
Pois em contra corrente aqui confesso: o juiz desembargador é o meu novo herói, quanto mais não seja porque me vem ajudar na croniqueta, que já tinha decidido dedicar aos desmandos de uma certa polícia. E no que respeita a fotógrafos e operadores de imagem, eles abundam por aí.
Há uns anos atrás, colaborava eu com uma estação de TV, fui obrigado, madrugada dentro, a demandar um certo hospital de Huelva onde estava internado um pescador espanhol vítima de um tiro de um marinheiro português em alto mar.
Eu e o meu companheiro de reportagem dirigimo-nos a uma patrulha da Guarda Civil à entrada da cidade e perguntámos onde ficava o desejado hospital. Com um sorriso, um dos agentes disse-me: “Sigam-nos”. Corremos a cidade toda até ao hospital, atrás do carro-patrulha, avenida após avenida. No final, o agente apontou-nos o edifício, fez continência e seguiu.
Habituados à frieza (quando não ao mais absoluto desrespeito) da polícia portuguesa perante os direitos dos jornalistas – sobretudo quando vêem uma câmara – eu e o meu colega entreolhámo-nos, estupefactos. Bastava passar o Guadiana para que a atitude fosse diferente? Pelos vistos, bastava.
A recente prisão ilegal de um fotógrafo amador que fotografava carrosséis, obviamente pejados de crianças, confundindo-o com um pedófilo, é mais um sinal da falta de preparação de muitos agentes para desenvolver o seu trabalho.
A um polícia exige-se, no mínimo, o conhecimento da lei quando sai para a rua. E não é preciso muito desse conhecimento para saber que fotografar numa feira não é crime, a não ser que se reincida ainda que algum visado pela foto (ou o adulto responsável, no caso dos menores) invoque o direito à imagem.
O que perturba mais naquele caso – e que é sintomático de como alguns agentes olham os cidadãos – é a forma como ele foi tratado: manietado, algemado, arrastado, humilhado à frente de toda a gente, detido durante quatro horas, fotografado de frente e perfil como um vulgar bandido.
Mas sobretudo… e esta é a parte que em meu entender mais simboliza uma certa maneira de “ser polícia” neste País… o tratamento por “tu”. Ao tratar por “tu” um cidadão a quem simplesmente se está a transportar à esquadra, alegadamente para identificação, um agente está a demitir-se do seu papel cívico e a elevar a brutalidade ao seu máximo expoente. Está a reduzi-lo à insignificância, a dizer-lhe: “Eu tenho poder para te tratar como me apetecer, és um boneco nas minhas mãos. Eu sou o poder”.
Quinze dias depois, o juiz de instrução arquivou o caso (obviamente) e devolveu a máquina apreendida, por falta de consistência legal. Mas nada apagará da memória daquele cidadão as sevícias físicas e sobretudo psicológicas a que foi sujeito e a humilhação por que passou. E acima disso, provavelmente, instalar-se-á nele um regime de auto-censura quando estiver na rua a fotografar, uma das actividades humanas que mais simboliza a liberdade. (E basta conhecer uma ditadura para saber que assim é).
Não porque esteja a cometer uma ilegalidade, mas porque, simplesmente, não quererá passar de novo pelo que passou. Quer dizer, os agentes não só foram brutais como brutalmente contrariaram a liberdade de que deveriam ser o máximo garante. Porventura irremediavelmente, acorrentaram alguém a si próprio, arrancaram-lhe espaço de liberdade . “Problema dele”, dirão alguns deles entre dentes, com os lábios quase quietos por baixo dos bigodes farfalhudos.
Recentemente, no aeroporto de Faro, um “plane spotter (fotógrafo de aviões) de 60 anos, daqueles que passou a vida a viajar pelo Mundo e quase não saía dos aeroportos, garantiu-me que não há sítio em que tenha sido mais importunado do que em Portugal.
“Em Málaga, na Espanha, onde têm o problema do terrorismo, estava a fotografar junto à rede e apareceram uns polícias a pedir-me a identificação. Sorriram, pediram desculpa e foram-se embora”, relatou o fotógrafo, com mais de 30 anos de experiência em fotografia de aviões por todo o Mundo. Em Portugal, acrescentou, “confundem-nos com os terroristas”.
Não há repórter de imagem – de TV ou foto – que não tenha mil e uma peripécias de encontros imediatos com agentes policiais ou seguranças. Uma vez, na sala de embarque do aeroporto de Faro, um segurança passou por mim a correr e a gritar para o colega “O gajo tá do outro lado!”. “O gajo” era um repórter de imagem que fazia a partida de umas quantas criancinhas para um baptismo de voo, autorizado pela direcção.
“O segredo para fotografar sem chatices é termos uma máquina compacta ou um telemóvel”, dizia-me há tempos um fotógrafo amador, já com “barbas” de problemas com autoridades, atraídas como ímanes pelas longas objectivas da sua câmara.
Realmente, num mundo em que toda a gente fotografa e filma e há câmaras ao preço da chuva e aos pontapés, os profissionais e os que levam o hobby um pouco mais a sério converteram-se nos protagonistas “maus” das tais “coboiadas” de que fala o meu herói deste filme. Aliás, desta crónica.
Não haverá maneira de os travar a não ser com “bocas no trombone”?
(João Prudêncio)
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