quarta-feira, 17 de outubro de 2007

...aquela coluna de Faro (1)




Monocultura da Futilidade

Em Faro, todos se lembram dela. Chamava-se Artis e distribuía prazer a rodos, entre novos e crescidos. Era papelaria, livraria, vendia brindes, jogos de xadrez e globos envelhecidos de propósito a imitar a cartografia dos Descobrimentos.

Era lá que os nossos filhos iam descobrir o cheiro da tinta impressa nos livros que tínhamos que lhes comprar para a escola. Era lá que lhes comprávamos os primeiros guaches Caran D’Ache, os lápis Staedtler que picavam na ponta e cheiravam a madeira, as borrachas tão perfumadas que apetecia comer e as Rotring de ponta 2.0 com que aprendiam a desvirginar o papel cavalinho.
Um dia, acabou a Artis. Desconheço as razões profundas e não sou ninguém para pôr em causa as incidências de um negócio privado. A Artis continuava cheia nas vésperas do fecho. Depois puseram papel pardo na vitrina, a tapar os jogos de xadrez de cristal, as Montblanc de prata onde mal nos espelhávamos e o último volume do Miguel Sousa Tavares.
Dias depois, onde antes havia uma pérola da cidade que toda a gente conhecia pelo nome, abria mais uma loja de roupa. Se querem saber a verdade, nem lhe sei o nome. É uma, igual a todas as outras, que debruam a rua, intervaladas aqui e ali por uma pastelaria, uma tabacaria, uma loja de malas ou de desporto.
O mesmo aconteceu no novo centro da cidade, aquele que roubou compradores à Rua de Santo António e a todas as ruas estreitinhas da pequena cidade. Lá, no Fórum Algarve, as lojas de roupa ocuparam metros quadrados onde antes se vendia música, livros, filmes. Agora vendem-se sapatos a 150 euros e camisas a 100.
Sei que o comércio mudou muito nos últimos anos. Sei que os pequenos comerciantes não podem chegar aos limites das lojas on-line, nem das superfícies gigantes onde o grande consumo se nivela por baixo, na qualidade e nos preços. Sei que os livros escolares dos nossos filhos se compram na Internet com 20 por cento de desconto e que um clique basta para evitar bichas e esperas de semanas por um título esgotado.
Mas isso não justifica tudo. Não é apenas a tipologia do comércio e das cidades que está a mudar, somos nós que mudamos. Ou se calhar, que teimamos em não mudar. No principal centro comercial de Faro, 80 por cento das lojas são (ou têm) roupa e calçado e há quatro (!) ourivesarias, algumas com relógios a cinco, dez mil euros.
Provavelmente, os mesmos que se queixam do preço dos livros, a que alegam não poder chegar, compram relógios a prestações. Ou poupam na música e nos filmes, que juram estarem pela hora da morte, para gastar em sapatos de marca e fios de ouro.
O fenómeno não é exclusivo de Faro, mas é aqui que mais o sinto. Nos centros comerciais de Lisboa não assisto a esta monocultura da futilidade, que tem tradução num centro comercial quase só de roupa de marca, relógios e quinquilharia.
Onde está e onde compra a elite intelectual do Algarve? Os oito mil alunos da Universidade? A classe dirigente? Deixaram-se também levar pela importância do “parecer”, que vai substituindo para pior a do “ter”, que por sua vez substituiu a do “ser”?
Sempre houve futilidade. E, desde que haja algum dinheiro (nem precisa de ser muito), gente disposta a comprar camisas que usa duas ou três vezes e vai fora apenas porque “já não gosto lá muito dela”. Porventura, nesse mundo imenso que é a classe média – que ninguém sabe muito bem o que é e onde por isso nos incluímos quase todos – as coisas sempre funcionaram assim.
“O meu carro é melhor do que o teu”, “o meu pólo é mais giro que o teu”, “o meu relógio é mais vistoso que o teu”.
Mas recordo-me, dos meus tempos de estudante, que havia uma classe de gente que deixava de almoçar para comprar um livro, que preferia andar de sapatos rotos e calças passajadas mas ir ao cinema todas as semanas, que comia todos os dias na cantina da Universidade mas comprava livros na Buchholz porque não tinham tradução em português.
É essa a tribo que eu temo que esteja em extinção. Em Faro, isso é notório.

(João Prudêncio – jornalista)

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