Moazzam Begg, um ex-prisioneiro em Guantanamo que terá alegadamente sido transportado pelo espaço aéreo português, disse hoje esperar que Lisboa reconheça responsabilidades, mas nega pretender uma indemnização.
De acordo com um relatório divulgado na segunda-feira pela organização de defesa dos direitos humanos britânica Reprieve, mais de 700 prisioneiros foram ilegalmente transportados para a base norte-americana de Guanátamo, Cuba, "com a ajuda de Portugal".
"Sim, eu fui um deles", revelou hoje à agência Lusa Moazzam Begg, um muçulmano britânico que foi detido em 2002 no Paquistão acusado de pertencer à Al-Qaida e transportado para Guantánamo, só sendo libertado em 2005.
"Fui transportado de Bagram [Afeganistão] até Incirlik, que é a base aérea norte-americana na Turquia, e daí fui transportado pelo espaço aéreo português até Guantánamo", afirma.
O relatório da Reprieve indica que Begg viajou no voo RCH191Y de Incirlik a 07 de Fevereiro de 2003, "atravessando a jurisdição portuguesa".
Actualmente envolvido na Cageprisoners, uma organização que denuncia o sofrimento e tortura dos prisioneiros em Guantánamo, Begg espera que o relatório divulgado pela Reprieve force o governo português a reconhecer a sua "cumplicidade".
"O que temos aqui são provas que mostram directamente que o espaço aéreo português foi usado para transportar prisioneiros ilegais de um ponto do mundo para outro e é importante que Portugal, tal como outros países que tenham estado envolvidos nisto, o reconheçam e admitam que foi errado", sublinhou.
"Assim que o fizerem, penso que podemos ultrapassar a questão", propôs Begg, que nega pretender pedir uma idemnização pelo que passou, mas apenas que Lisboa admita o envolvimento.
"Isso seria para mim a melhor recompensa", adianta.
Quanto ao argumento de que Portugal não estaria ao corrente do que os norte-americanos estavam a fazer, Begg responde que tal seria difícil face ao número de voos.
"Não foi apenas um, foram muitos, não só de Bagram e Incirlik, mas de outros sítios, e tiveram de cruzar o espaço aéreo. É difícil argumentar que não se sabia o que os americanos andavam a fazer. Tinham de ter autorização para atravessar o país", insiste.
O governo português, através do secretário de Estado dos Assuntos Europeus, já reagiu ao relatório da Reprieve rejeitando as suas conclusões.
"Naturalmente, repudiamos as conclusões a que esse relatório chega", disse à Agência Lusa Manuel Lobo Antunes, frisando que o relatório lista "dados já conhecidos" que "trata de forma leviana".
"Manifestamos a nossa condenação, a nossa rejeição e também a nossa indignação (...) tendo em conta que o governo português prestou todas as informações de que dispunha, com toda a transparência", acrescentou.
Detido três anos e vítima de diversas formas de tortura, Begg mostra-se "confiante" de que Guantánamo fechará depois das eleições presidenciais norte-americanas.
"Quando [o presidente George] Bush já não estiver no poder, pessoas como o senador [John] McCain, Barack Obama e Hillary Clinton [candidatos à presidência] já disseram categoricamente que fechariam Guantánamo e eu penso que os americanos já perceberam que aquilo prejudicou mais do que beneficiou", disse à Lusa.
"Se Guantánamo continuar aberto, será o símbolo da maior injustiça do mundo", conclui.
A Reprieve, organização não-governamental criada por advogados, em 1999, para prestar representação legal a presos que enfrentam a pena de morte, disse ter elaborado o relatório através da comparação de dados obtidos junto das autoridades portuguesas, informações do Departamento de Defesa dos Estados Unidos com datas de chegadas de prisioneiros a Guantanamo e testemunhos de muitos prisioneiros.
A ONG defende que as investigações "demonstram que Portugal desempenhou um papel de apoio de relevo no amplo programa de transferência de prisioneiros" e, "pelo menos, nove prisioneiros transportados através de jurisdição portuguesa foram cruelmente torturados em prisões secretas espalhadas pelo Mundo antes da sua chegada a Guantanamo".
Este relatório da REPRIEVE é publicado sensivelmente um ano depois de o Parlamento Europeu ter aprovado o relatório final da comissão temporária, presidida pelo eurodeputado português Carlos Coelho, que, durante mais de um ano, averiguou os alegados voos ilegais dos serviços secretos norte-americanos (CIA) na Europa para transporte ilegal de prisioneiros suspeitos de terrorismo.
O relatório do PE exortou diversos Estados-membros, entre os quais Portugal, a aprofundar as investigações. O Ministério Público português abriu há cerca de um ano um inquérito-crime sobre o assunto, cuja decisão final estará para breve, segundo fonte da Procuradoria-Geral da República disse à Lusa na semana passada.
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