Dono de um café num bairro residencial de Faro, António Marques, 46 anos, tem um hobby singular, de que será único praticante em Portugal: recolhe aves selvagens mortas, retira-lhes a anilha e, nessa base, traça a história do animal.
Mas para que isso aconteça, o homem que há 25 anos anilha e "desanilha" pássaros no interior algarvio comunica o achado à central de anilhagem do país onde o animal foi marcado e espera pela sua ficha, uma espécie de bilhete de identidade da ave.
"Só preciso de saber o número da anilha e envio-lhes a data e o local da recaptura. A partir daí, recebo os dados relativos à ave quando foi anilhada, isto é, o seu peso, sexo, idade, cor e a data em que foi anilhada", precisa António Marques, que estima em cerca de 200 as recapturas que fez até hoje.
A anilhagem de pássaros - a que Marques também se dedica - permite aos cientistas estudarem o movimento e hábitos das aves selvagens, tarefa que em Portugal está a cargo do Centro de Estudo de Migrações e Protecção de Aves (CEMPA), criado em 1976, que funciona no âmbito do Instituto para a Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB).
Na Europa, a actividade e os seus frutos científicos são centralizados no EURING (União Europeia para a Anilhagem de Aves), que coordena as anilhagens no Velho Continente e Norte de África.
Paladino das recapturas por simples interesse científico, coleccionador de "fichas de vida", vale a António Marques uma grande rede de conhecimentos que lhe permitem ter acesso aos cadáveres das aves selvagens, sobretudo entre os caçadores.
"Sei muita coisa por causa dos caçadores, às vezes há um que me conhece ou que conhece alguém que me conhece e acabo por ficar com a anilha", explica o comerciante, ex-polícia, ex-emigrante na Suécia, sem formação científica na área.
Ressalva que nem sempre a sua actividade é vista com bons olhos entre os homens da caça, às vezes têm medo de lhe dar o aro metálico, pensam que os vai denunciar às autoridades ou aos ambientalistas, que os acusarão de terem matado o animal.
Mas não: António Marques só quer ter na sua posse a ficha da ave e para isso comunica o achado por e-mail ao país cujo código aparece no aro.
Na melhor das hipóteses, passados poucos dias recebe a ficha da ave, explica António Marques: "Os russos, alemães e holandeses são os mais rápidos nas respostas", aponta, esclarecendo que dá sempre conhecimento dessa circulação de fichas ao CEMPA.
"Os piores são os espanhóis, chegam a demorar três anos", esclarece, satisfeito por, apesar de tudo, responderem sempre; "Nunca fiquei sem uma resposta, qualquer que seja o país isto funciona sempre".
Conhecedor das características dos movimentos migratórios das aves que circulam entre a Europa e África, António Marques sabe que, em qualquer recaptura, terá mais hipóteses de que o animal tenha sido anilhado no centro ou leste europeu.
O seu "recorde", materializado numa ficha que mostra com orgulho mal disfarçado, é um minúsculo pisco detectado em São Brás de Alportel, Algarve, que lhe chegou às mãos a 21 de Fevereiro de 2006, com a anilha XL87523, de origem russa, na pata.
"Se nos limitarmos à distância em linha recta, aquela ave pequeníssima percorreu 4.000 quilómetros, mas na rota das aves, isso implica que percorreu o triplo, 12 mil quilómetros", calcula. Praticamente todas as espécies migratórias de aves selvagens fazem da Península Ibérica local de passagem, depois de passarem o Verão no Leste europeu, antes de se abalançarem até África, no Outono.
Movimentos que nem sempre podem ser percebidos com base nas anilhas de animais já mortos; "Tivemos um verdilhão anilhado aqui, na Fonte da Benémola (Loulé) em 6 de Agosto de 1994 e que foi encontrado morto em Boliqueime a 22 de Dezembro de 2006. Viveu 12 anos e veio morrer ao sítio onde foi marcado com poucos meses de vida", constata.
Mas nem só de aves que completaram o ciclo de vida se faz o cardápio do comerciante de Faro: algumas aves maiores detecta-as ele com os seus binóculos, aponta o código das suas anilhas, inscritos em letras suficientemente grandes para serem visíveis ao longe.
Depois, pede a ficha do animal ao EURING, um autêntico "curriculum vitae" que descreve todos os locais onde a ave foi avistada.Por exemplo, um flamingo que avistou em 2 Abril deste ano na ria de Alvor tinha uma extensa ficha em que se incluía a anilhagem em França a 26/07/2006, um novo avistamento a 23 /12/2006 na ria de Alvor, um outro a 04/03/2007 na Lagoa dos Salgados e, já depois da detecção de 2 Abril em Alvor foi de novo visto nos Salgados 20 dias depois.
Além da detecção de aves anilhadas, vivas ou mortas, António Marques dedica-se também à anilhagem, uma actividade que os ornitólogos consideram indispensável para os estudos científicos.Já há 25 anos que, mal se consegue libertar do trabalho no café, António Marques ruma à Fonte da Benémola, onde se encontra com os seus amigos da associação ambientalista algarvia Almargem.
Por ali, meia dúzia de entusiastas que trabalham a troco de nada, capturam, anilham, pesam, medem, anotam e libertam verdilhões, guarda-rios, pica-paus, pintassilgos e outros pequenos pássaros, que um dia serão recapturados, vivos ou mortos, e ajudarão a construir uma pequena mas decisiva parcela do conhecimento humano.
Texto: João Prudêncio / Fotos: Osores
Nenhum comentário:
Postar um comentário