quinta-feira, 20 de março de 2008

O País a 120 à hora!


O País a 120 à hora

Num programa televisivo de crítica social, ouvi há dias uma frase sintomática de uma certa forma de ver a realidade. Dizia alguém, habitualmente tido como “de direita”: “Se temos o défice tratado e as finanças em ordem, mas depois uma pessoa passa pelas estradas e só vê bairros sociais e miséria, o que é que nós vamos pensar sobre que tipo de País é este?”.

Não é sobre o tipo que raciocínio, compreensivelmente muito comum, que me interessa falar aqui, mas sobre o que lhe subjaz. Qual era o sujeito subliminarmente presente na oração do comentador? Quem somos “nós”, que passamos pelas estradas?

Reparem que ele não disse “o que é que havemos de pensar (ou, já agora, ‘de comer’) nós que vivemos num bairro degradado”, mas sim “nós”, os que visualmente contactamos com essa realidade desagradável à beira da estrada, “nós” (as “pessoas”), os dos carros a 120 à hora nas circulares das grandes cidades. Que chatice ter que levar com uma poluição visual tamanha, prédios feios sem varandas, gente nas filas dos autocarros. Que os levarão às suas obras de construção civil para construir as “nossas” habitações e aos escritórios que prepararão antes de "nós" chegarmos, às 10 da manhã e nos sentarmos às secretárias.

Ironicamente, o comentador fazia alusão ao alegado autismo de um Governo alheio até a essa realidade feia dos subúrbios, mas não deixava de utilizar o mesmo padrão de raciocínio desse Governo, que ele paradoxalmente criticava.

“Para quê preocuparmo-nos com a realidade social se temos números tão bonitos”, afirma um; “De que me servem os números se tenho que levar com as horríveis casas dos pretos em cima?”, riposta o outro.

A pérola deixada cair pelo inefável Vitalino uma destas noites no Largo do Rato sintetiza este raciocínio. No País da miséria escondida, no País em que de novo emigramos às centenas de milhar, para a Galiza ou para Inglaterra, no País da contestação nas ruas como nunca se viu em 30 anos, o inimitável porta-voz confessa que o seu partido apenas faz balanços das coisas boas porque elas são tantas que nem há tempo para as más.

Dir-se-ia que o partido do Governo não se limita a passar nas estradas a 120… vai completamente entretido, qual criança no banco de trás, de auscultadores na cabeça, imerso na compilação em DVD dos seus últimos tempos de antena.

Estranha realidade esta, em que a “esquerda” no poder se preocupa menos com a miséria - ao menos da perspectiva “passante” de uma classe média que se quer livrar do esteticamente horrendo e com isso, como sempre, do omnipresente sentimento de culpa – do que um comentador de direita.

E no entanto, esta atitude sobranceira de governar, para os números das finanças “a limpo”, mas também para os números dos “shares” televisivos, esta forma de esquecer as multidões que têm que emigrar e os que vivem em condições precárias entre nós, está a fazer escola e previsivelmente dará bons resultados eleitorais.

Por seu turno, a oposição não existe ou anda entretida com problemas internos. Ou, onde residualmente existe, limita-se a atacar lateralmente e aos ziguezagues ou a cavalgar ondas de descontentamento, seja de professores ou de utentes dos serviços de saúde.

A classe média passa a 120. Sócrates aprendeu com ela, com a sua marca de insensibilidade sempre presente e manda às malvas as franjas dos descontentes. Perde os professores mas ganha muitos pais; perde os dispensáveis da função pública mas ganha os do privado; perde os que emigram mas ganha os das Novas Oportunidades a quem dá computadores; perde os de Anadia, que ficam sem consultas à noite, mas ganha os de Coimbra, que continuam com consultas à noite.

É neste “deve e haver” que se joga o futuro imediato do País. No palco, um homem fala para as televisões, com microfone de lapela e dois telepontos, em cenário de pavilhão minúsculo mas muitas bandeiras gigantes para esconder a falta de militantes de um partido que olha o seu deus e se compraze com a obra feita.

Nas ruas, como nas estradas, “nós” passamos a 120. Mas ainda há “os outros”. Os que ficam nas paragens e nunca sairão dos bairros sociais, os desempregados de longa duração, os velhotes das casas lúgubres das grandes cidades ou das freguesias de Alcoutim. Os que estão, os que ficam. Os que não vêem o homem do teleponto em directo na SIC/Notícias porque não têm SIC/Notícias. Os que não sabem o que é o défice mas por causa dele têm que ir à consulta a 50 quilómetros de casa. As franjas do sistema.

As “coisas más”, em que nem vale a pena pensar, num país com “tantas coisas boas”.

João Prudêncio
jornalista

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